Por Angélica Souza

Quando o sacerdote jesuíta Jacques Trudel chegou ao bairro Mustardinha, na Zona Oeste do Recife, em 1975, encontrou uma pequena capela dedicada ao Bom Jesus Atado e uma comunidade formada, em sua maioria, por negros. Doutor em teologia litúrgica e natural do Canadá, o Padre Jaime, como é chamado pelos fiéis, encontrou na dança uma forma de resgatar a cultura negra da comunidade nascida do engenho chamado Mocotó. “O primeiro motivo era litúrgico. Tinha como objetivo promover a interação com a cultura do povo que celebra. A gente sabe que, no Brasil, a cultura negra foi, de certa maneira, esmagada; então a gente quis trabalhar a dignidade, a autoestima das pessoas da comunidade”, explica o sacerdote. “A maior parte de população o bairro tem nítida influência cultural de herança africana e cada vez mais  assumida pelos jovens. Mas é levada em conta toda a herança cultural da região”, conclui.

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Foi então que, na década de 1980, surgiu a dança litúrgica que teve inspiração na experiência africana, tal qual é vivida no Haiti. Inicialmente, a dança procurou analisar dois gêneros particulares da liturgia dançada: a dança como na América do Norte, com coreografias, inspiradas na expressão corporal, com gestos sugeridos a partir da música. A outra linha da dança litúrgica vem propriamente de cultura africana, que, para Trudel, corresponde melhor à cultura que temos aqui no Brasil. “A palavra dança pode confundir, porque certas pessoas podem pensar que se trata de transportar ao embalo dos salões da rua ou de outras religiões para dentro da liturgia, mas de criar uma dança, propriamente da liturgia, que seja um ministério litúrgico. Experiência bastante comum na África”, afirma ele, que teve os primeiros contatos com uma dança litúrgica quando teve contatos com pessoas do Zaire durante curso que durou três meses na Bélgica.

O processo para inserção da dança foi lento. Inicialmente, o sacerdote levou, para a comunidade, vídeos da experiência da Dança Litúrgica no Zaire, iniciando os primeiros passos-base.

A cultura moderna traz uma maior valorização do corpo, fazendo com que as pessoas expressem emoções, sentimentos através do corpo, da dança.  “O nosso modo de fazer foi bastante aceito por todos os que frequentam a comunidade. Muitas vezes, através de vídeos, os adultos e jovens escolhem os passos que parecem mais adequados, deixando de lado outros menos condizentes para nós ou que poderiam chocar as pessoas”, conta o padre.

Segundo ele, através da ajuda de membros que também tiveram formação de dança popular regional, o grupo ministerial da dança litúrgica foi adaptando passos mais regionais – “inspirados da ciranda para o glória, dançado em redor do altar, do maracatu para a procissão das ofertas, do xaxado para a procissão do Evangelho”, afirma o padre. De acordo com ele, assim como na Campanha da Fraternidade, os cantos são inspirados em canções populares de acordo com cada região e a dança recebe influência da cultura popular, mas adaptando à realidade local. A liturgia dançada acontece nas missas dominicais pela manhã, com um grupo formado pelas crianças da catequese, assim como à noite, com jovens e adultos, exceto durante a quaresma.

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Na tradição afro-brasileira, a dança já era parte integrante da ação litúrgica, mas, no catolicismo, embora houvesse elementos da religiosidade popular, não havia liturgia como tal. A dança litúrgica está presente no rito zairense desde 30 de abril de 1988, pela Congregação para o Culto Divino, A Liturgia Romana e a Inculturação. “Em certos povos, o canto é instintivamente acompanhado do bater de mãos, de movimentos ritmados e de passos de dança dos participantes. Tais formas de expressão corporal podem ter lugar na ação litúrgica desses povos, na condição de ser sempre expressão de uma verdadeira e comum oração de adoração, de louvor, de oferta ou de súplica e não mero espetáculo”.

No Brasil, durante a 27ª Assembléia Geral da Conferência Nacional dos Bispos (CNBB), realizada em abril de 1989, foi aprovado o Documento Animação da Vida Litúrgica no Brasil, o documento 43. “Nosso corpo, sensível e dócil ao movimento, é uma fonte inesgotável de expressão. Por isso, na liturgia, têm importância os gestos, as posturas, as caminhadas e a dança”. Só em 15 de agosto de 1998, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, confirmou o “Ritual do Batismo de crianças na tradução portuguesa da segunda edição típica com adaptações à índole do povo brasileiro”, sendo assim, a dança litúrgica aprovada pela Santa Sé, como sugestão pastoral constante nos documentos da Igreja do Brasil.

CANDOMBLÉ – No candomblé, a dança está presente em todas as celebrações litúrgicas. Jorge Sabino e Raul Lori, no livro Danças de Matriz Africana – Antropologia do Movimento, afirmam que “a roda dos orixás é grande momento de socialização do egbé – comunidade – do terreiro com as outras comunidades, bem como o público iniciado, que podem participar da roda, o que torna o acesso às danças democrático”. Ainda segundo os autores, as rodas são as primeiras formas de adesão ao sistema sagrado, uma verdadeira iniciação à cultura da dança.

Aline Lopes aprendeu  na Igreja os primeiros passos. “Eu sempre via as meninas da dança e me interessei. Daí eu comecei na dança litúrgica das crianças, nas missas da manhã, voltada para catequese”, conta Aline que, aos 14 anos, começou a dançar profissionalmente no Balé Afro Arte e Vida. Alguns anos depois, ela teve a primeira experiência no culto de matriz africana.“ A dança no candomblé me causou um encantamento como se algo tivesse sido despertado em mim. É tudo muito mais bonito do que a dança que a gente fazia, enquanto dança artística”, afirma.

CONSCIÊNCIA NEGRA –  No regime escravocrata, o negro não tinha possibilidade de se propor a cidadão. Em 20 de novembro de 1695, morria o grande líder quilombola. Zumbi dos Palmares se tornou um referencial na luta pela liberdade. “Zumbi foi um dos maiores estrategistas na luta pelo combate ao racismo, imperialismo, ao terrorismo, ao coronelismo. Todos esses ‘ismos’ que oprimiam o negro durante esse período foram maciçamente abatidos pelo grupo liderado por Zumbi”, explica o arte-educador especialista em ciência das religiões, Francisco Alexandrino.

No ano de 2011, a presidente da República, Dilma Rousseff, sancionou a Lei 12.519, que institui a data que faz memória à morte do mártir negro como Dia Nacional de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra, que passou a ser comemorado e fazer parte do calendário das escolas e de instituições públicas e privadas, destacado como um evento cívico vibrante e de participação popular.

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